A Arte de Vanguarda
Noel NascimentoA arte de vanguarda originou-se reacionária.
Pretensa nobreza e artistas reacionários não se conformavam com o acesso do
povo à cultura .Não viam com bons olhos a democratização da sociedade com a
revolução industrial e ascensão da burguesia.Queriam diferenciar-se da “multidão
vulgar” em meio a qual se sentiam anônimos, despersonalizados. Trabalhadores
melhoraram de vida, tinham descanso em férias, sábados, domingos , e até faziam
excursões . Com tempo livre participavam de esportes, de jogos organizados.
Havia conglomerações em toda parte. A partir de l.87O, surgiam associações,
clubes, sindicatos, torneios. O fortalecimento dos estados nacionais dependia da
educação nas escolas, o povo sabia ler e escrever, publicavam-se livros, jornais
e revistas, modernizavam-se os meios de produção e de comunicação. Acabavam-se
os privilégios das “classes altas”.Com os novos ricos e políticos profissionais
acima da nobreza decaída, plebeus tornavam-se cidadãos com direitos e
freqüentavam os mesmos lugares que elas. Tudo isto explicava o ódio à burguesia
e seus novos valores, direitos humanos, liberdade e progresso, tanto quanto à
sua arte popularizada, em síntese: o romantismo. Artistas também ciosos de
suposta superioridade não podiam perder a identidade, confundidos com a
“ralé”.Queriam afirmar a sua ascendência. Homens e mulheres de sensibilidade
teriam de admirar apenas o excepcional. Então o uso de drogas, a
homossexualidade, tudo seria válido para dela diferencia-los. E para afirmar a
superioridade falavam em purificar a nação, pregando o anti-semitismo.
“É tudo
vaidade e aflição de espírito, diz Eclesiastes na Bíblia. Queriam, pois,
sobressair-se, o que é comum em nossos dias:“o que foi é o que há de ser”. Então
criaram a arte dos indiciados, divorciada do público. No princípio a música sem
melodia, os versos sem métrica, rimas e poesia, o romance sem enredo.
Experimentos formais enigmáticos, vazios de conteúdo. Uma arte para os
“superdotados”, vedada às classes pobres tal como ocorria nos tempos de reis e
nobres. Representara reação retrógrada de desprezo à democratização e ao
humanismo, enquanto não se evidenciavam as contradições próprias no processo
cultural. Já se estendiam ao campo das artes e da literatura, como na História,
bem ou mal interpretadas as concepções darwinianas, freudianas e marxistas.
Contribuíam para a substituição da crença em Deus pela crença em super-homens
acima do bem e do mal, como de artistas, eles sim destacados das massas, capazes
de criar novas realidades. A tal caráter negativo que influiu na arte de
vanguarda acrescente-se a idéia das novas doutrinas de supremacia racial e
nacional , de legitimidade das ditaduras. As conseqüências vieram com o nazismo,
o fascismo e o comunismo de Lênin e Stalin. Apesar disso, logo considerada por
Sartre a filosofia insuperável do tempo, o marxismo devido à luta de classes e
ascensão do proletariado era uma contradição no processo cultural, uma
resistência ao caráter negativo. Realçando como qualidade essencial nas artes o
realismo, defendia ao inverso uma arte contrária ao domínio sobre o
proletariado, a qual repercutiu positivamente em todo o mundo, ainda que se
tornasse facciosa, política.
Eis a
origem e a razão das composições exóticas, algumas vezes até chocantes, ainda em
nossos dias como as da “Pop Art” nos Estados Unidos.
Em
relação ao proletariado, a burguesia rica e sua intelectualidade desempenharam
papel idêntico ao da aristocracia e a sua intelectualidade.
Pode-se
também compreender o manifesto de Marinetti, pregoeiro fascista a prescrever
programa contracultura que originou aos que não o aceitavam a designação de
acadêmicos. E por mais paradoxal que se afigure as experiências são sempre
válidas, fazem parte do aprendizado para a busca do certo e do novo.
O
romantismo rompera com os padrões clássicos e dera maior liberdade aos artistas
precedendo as artes de vanguarda, mas estas engrossadas por tantas vertentes em
seu percurso, como afluentes, deixando às margens o entulho, ainda que
conservando contradições, desaguaram no grande e caudaloso Modernismo. Então as
conquistas formais e a liberdade aos artistas não tiveram mais limites. O
realismo como em todos os tempos e escolas foi e é o divisor das águas entre o
positivo e o negativo. Havia razões na posição formalista, no cubismo, no
abstracionismo, no surrealismo. Ainda que se considerassem autônomos em relação
à sociedade, não o eram! Essas e outras concepções semelhantes só fazem
esplender ainda mais o real e o humano como princípios eternos da arte. O
realismo deixa de ser restrito a representações naturalistas. Reconhece a
existência de liames verazes com a natureza não só na intuição, mas nas emoções,
no imaginário e até no fantástico.Um realismo artístico ainda, lógico pelo nexo
de causalidade, inspirado, dependente de talento. Não fora tal compreensão não
se poderia falar em ficção e poesia realistas. Não há como negar a importância
de Cèzane, crença em mundo transcendente; de Braque, pintura de essências; de
Wolfgang Paelen, supressão da perspectiva e horizonte; dos gênios adaptando-se
às condições novas, que vencem as barreiras de todas as correntes. Certamente a
fantasia não significa de todo um rompimento com o real e o humano. O que não se
pode concordar é com a negação do conhecimento, do mundo objetivo e a exclusão
dos sentimentos. Afinal, quanto mais uma arte procurar afastar-se do real e do
humano, considerando-se autônoma, debilitando-lhe os liames, revela seu caráter
reacionário, decadente.
Belo
exemplo positivo é o de Picasso. Não bastasse a apreensão das características
permanentes em suas figuras, com seu talento expressa em “Guernica”, no mais
formidável realismo, o horror da guerra, mais do que a cidade destruída, a dor,
a desolação, a própria guerra. Dá formas a um conteúdo de razão e emoções, de
revolta, tudo calado em seu espírito, numa catarse materializado na
obra.
Mudara
muito o mundo no período das grandes guerras do século XX, culminadas com
hecatombes como a de Hiroshima. Já estavam em voga idéias liberais, cientismo na
poesia e no romance, novos processos de crítica e história literária, alterações
na lingüística, No entanto, o capitalismo gerara a corrupção também na área
cultural. Tudo parece ter preço quando o valor absoluto é o dinheiro.
Intelectuais tentavam deter o avanço das classes trabalhadoras através de obras
simplesmente alienantes ou de objetivo reacionário.Com o desenvolvimento
econômico-social, avanço das ciências e da tecnologia, a massificação atingia
índices cada vez mais elevados. Sobrevivera também o romantismo, ainda após as
manifestações mais importantes. A massificação alcançara indistintamente os
meios artísticos e literários. Tal fenômeno concorria para a popularização e até
banalização das artes em ambas correntes estéticas. De um lado, cascata de
trovas, sonetos repetitivos, autores maçantes, prosaicos, copistas; de outro,
produção em massa de simulacros literários, piadas, tolices, aos milhares as
coletâneas de versos sem sentido, quando não oculto para advinha-lo a crítica.
Contos e mais contos paupérrimos de conteúdo a pretexto de interesse pelo
cotidiano e pela linguagem falada. Na verdade todos autores apenas de
conhecimentos rudimentares sobre a escrita e a poética, menos ainda sobre
filosofia e história. Mas tanto uns como outros a repetir as mesmas coisas como
os comentários e crônicas que ainda fazem sobre o noticiário da mídia. Ou a
procurar notoriedade apelando para temas de violência e erotismo, não
amor.
Coube-nos formular o
realismo humanista, que autentica em razão de todos os valores intrínsecos e
explica a perdurabilidade de uma obra de arte. Considera natural e necessária a
incorporação de pesquisas formais adequadas ao conteúdo. Toda arte é
cognoscitiva, realista, e maior quando de exaltação estética. Exemplifiquei-a
com Picasso. E’invenção, fruto também de imaginação e emoções, há nela o
espírito do artista, a sua realidade íntima, sua visão singular. Pode
transfigurar o real para revelar-nos forças que o movem, o poder, o significado,
tudo que é. Seu dom é inato e se nos afigura, como a fé, um conhecimento
pretérito e do futuro.
O
realismo humanista aprova estilos de linguagem. As imagens poéticas na escrita
são as metáforas, hipérboles, alegorias, parábolas, símbolos e outras figuras
estilísticas nos versos, contos ou romances. As imagens visuais são as do
desenho, da pintura, da escultura, e não literárias. Na poesia é imperioso
destacar que no verso livre há dependência do ritmo pessoal, inexistente numa
grande maioria. Ou de um “eu lírico”que alcance horizontes mais altos.
Entre
nós, desde as primeiras manifestações predomina a literatura realista,
principalmente na prosa. Na poesia, nem tanto quando experimentalistas adotam o
pensamento parnasiano de “arte pela arte”.Convém lembrar que o modernismo no
Brasil é, antes de tudo, uma revolta justamente contra o parnasianismo.E
torna-se necessário ressaltar a afinidade entre o romantismo e o modernismo em
torno “de espírito revolucionário”, como afirma Mario de Andrade. E’quem destaca
a função social do intelectual, lidera a corrente de artistas participantes
buscando na literatura popular, no folclore, na música, na pintura e na língua a
identidade nacional. São presentes as obras de Portinari, Di Cavalcante, Goeldi,
Anita Malfatti, Augusto Rodrigues, Poty, Dorel. Na música não agrada o
atonalismo e a engrandecem Vila Lobos, Francisco Mignone, Camargo Guarnieri,
Guerra Peixe.
No
Brasil, é vanguarda o modernismo, tem caráter progressista e, sob a influência
de Alceu Amoroso Lima, com o seu nacionalismo servindo-lhe de esteio. E’ um
grande marco em nossa História. Houve nesta, todavia, uma lacuna que procuramos
demonstrar e reparar quando da publicação do romance “Arcabuzes”. A revolução
liderada pela burguesia, das classe urbanas, contra a monarquia , a
aristocracia e o escravismo,pela República, que em conseqüência de uma
contra-revolução envolveu a Nação em sangrenta guerra civil . Fato de maior
significação histórica no País, até então ignorado ou omitido por falta de
interpretação.
Tanto um
conto como “Curiango”, de Afonso Schimite, ou “Cemitério de Elefantes” e “Morte
na Praça”,de Dalton Trevisan, revelam o essencial. Pois a excelência de uma obra
de arte moderna se reconhece pela exaltação estética na forma correspondente,
que é pessoal. Pode inclusive não obedecer limites entre um gênero e outro, com
forma apropriada ao assunto. Isto acontece numa verdadeira crítica-poema, por
assim dizer, da mais pura exaltação estética do escritor Miguel Sanches Neto ao
pintar um painel literário sobre o Aleijadinho e sua obra.
Procuramos num pensamento
brasileiro fundamentar um novo realismo com princípios e valores humanos
perpétuos. Achamos que, com o modernismo, sem os preconceitos da decadente
nobreza e artistas reacionários do século XIX, que desprezavam o povo, há sim
uma arte de vanguarda. Os autores voltam-se para a vida, para o social, para o
real e o humano, expressando-se em suas obras. Não são iniciados em artes
ocultas para se diferenciarem julgando-se superiores. Amam e valorizam o
próximo, dando substância à arte de vanguarda.
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